Falecido: Raul Santos Seixas
Sexo: Masc. Cor: Branca Idade: 44 Profissão: Músico
Natural de: Salvador (BA)
Nome do pai: Raul Varella Seixas Vivo
Nome da mãe: Maria Eugenia Santos Seixas Viva
Local do falecimento: R. Frei Caneca nº 1.100 ap.1.003
Endereço do falecido: O mesmo
Deixa bens? Não. Direitos autorais
Causa da morte: Pancreatite crônica, Hipoglicemia, Parada cardiorrespiratória
Data do falecimento: 21/08/89 Hora: 5:00
O que foi escrito nessa Declaração de Óbito há 25 anos, ao mesmo tempo em que documentou a morte de um dos artistas mais relevantes da história recente do Brasil, registrou o nascimento do maior herói da mitologia do rock brasileiro. Para muita gente, Raul Seixas não foi apenas um cantor, músico ou poeta. Ele foi um profeta. Foi um santo. Até mesmo um messias.
Desde que morreu, Raulzito é adorado por uma legião estendida por todo território nacional. No centro de São Paulo, onde viveu seus últimos anos, anualmente acontece a Passeata Raul Seixas reunindo milhares de pessoas para prestar homenagens a ele no dia de sua morte. E há 25 anos consecutivos isso acontece de forma completamente espontânea, sem líderes ou leis, como conta Sylvio Passos, que esteve em praticamente todas as passeatas:
“No começo era uma manifestação dos fãs feita de uma maneira natural, mas de uns dez anos pra cá começou a aparecer mais a questão messiânica. Chamavam o evento de ‘romaria’, eu não gosto disso. Não é uma romaria. É uma passeata, uma manifestação pública em homenagem ao Raul Seixas”, afirma Sylvio, uma das pessoas mais empenhadas em manter viva a memória do Raul.
Passos conviveu intimamente com o músico durante os últimos oito anos de sua vida e a relação que começou motivada pela criação do Raul Rock Club (fã-clube que Sylvio fundou em 1981) se transformou em uma amizade sólida. Hoje, é o pilar que estrutura sua vida: “O momento em que conheci o Raul foi um divisor de águas. Minha vida tomou um rumo completamente diferente do que eu havia planejado, era pra eu ser jornalista ou psicólogo e acabei abraçando a causa Raulseixista. Porque a gente transcendeu o véu que existia entre o Sylvio garoto e o Raul Seixas artista e passamos a ter uma convivência diária. Eu tava ali em todas situações, nas boas e nas ruins”.
Atualmente, Sylvio Passos é como se fosse o apóstolo-mor do Raulseixismo. Ao ter herdado muitas fotos, anotações e gravações inéditas que Raul guardava em um baú, ele foi incumbido de um objetivo missionário de compartilhar esse tesouro com os outros fãs. “O Raul confiou a mim essa missão. A gente brincava que essa era a Caixa de Pandora do Raul. Seu conteúdo foi dividido comigo e com a Kika [Seixas, sua penúltima esposa]. Algumas coisas ficaram espalhadas com as filhas e ex-mulheres, mas o principal ficou conosco”.
Junto à gravadora Eldorado, Sylvio lançou dois discos com registros ao vivo inéditos do cantor: Eu não sou hippie, gravado em 1974, em Minas Gerais, e Isso aqui não é Woodstock, mas um dia pode ser, gravado em 1981 no Festival de Águas Claras. Os álbuns novos sairão em um box com seis discos, os outros quatro são Raul Seixas (1983), Ao Vivo – Único e Exclusivo (1984), Raul Vivo (Ao Vivo em São Paulo 1983) (1993) e Se O Rádio Não Toca… (Ao vivo em Brasília 1974) (1994). Sylvio afirma que possui material suficiente para lançar mais de dez discos inéditos: “Tenho muitas gravações de estúdio, gravações caseiras, ao vivo. Tem desde os primeiros acordes do Raul no início da carreira até seus últimos acordes. Fitas cassetes, fitas de rolo, tá tudo comigo”.
Mas apesar de seus esforços, Sylvio é duramente atacado pelos raulseixistas fundamentalistas:
“Porra bicho, eu tô nisso há 33 anos lutando de todas as formas possíveis pra manter a memória do Raul viva e me deparo com uma fatia do público que tem um olhar messiânico pro Raul, é uma meia dúzia que eu chamo de ‘os black blocs do Raulseixismo’. Acabo sendo vítima desse grupo de seguidores do Raul que o olham dessa maneira e me crucificam, crucificam a Kika, o Paulo Coelho, o Marcelo Nova. Eles não conseguem ver que o Raul não existiria sozinho, tinha que ter o exército dele trabalhando junto. Mas existe uma fatia do público que é muito radical, cara. Eu sou apedrejado, falam que somos oportunistas, que tá todo mundo rico, sendo que não é assim. Essa coisa messiânica é preocupante. Eu já fui ameaçado de morte. Se você analisar o perfil dessas pessoas, vai ver que elas têm uma devoção quase religiosa com o Raul. Eles veem no Raul um Jesus Cristo, um Deus!”.
“Não consigo entender porque isso só acontece com o meu pai. Alguns fãs são tão cuidadosos, não sei se é por ciúme, mas eu concordo com o Sylvio. E isso acontece logo com meu pai que pregava o ‘faz o que tu quer que é tudo da lei’”, comenta Vivi Seixas, a filha mais nova do cantor. DJ, ela conta que também já foi alvo dos devotos de Raul: “Se eu toco Raul, me criticam. Se eu não toco, me criticam também”.
Além de ser uma maluquice, tudo isso é muito irônico. A primeira música que Raul apresentou ao público em carreira solo (depois de já ter gravado os discos Raulzito e os Panteras (1968) e Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10 (1971)) foi “Let Me Sing, Let Me Sing”, no Festival Internacional da Canção em 1972. E nesse baião-rock ele não deixa dúvidas: “Não vim aqui tratar dos seus problemas, o seu messias ainda não chegou”. O Maluco Beleza certamente não é nenhum Cristo, mas profético ele realmente foi.
“Lembro quando disseram pro Raul que queriam conhecer ele melhor e ele falou: ‘Quer me conhecer de verdade? Ouça minhas músicas. Eu estou inteiro nelas’”, recorda-se Sylvio Passos. Pois então, no Krig-Ha, Bandolo! (1973), seu primeiro disco solo, é evidente a tentativa do músico de se apresentar, definindo-se aos ouvintes. Após uma vinheta rápida onde se ouve Raulzito cantando uma música do Elvis aos nove anos de idade, o álbum começa com “Mosca Na Sopa”, onde ele se declara uma pedra no sapato dos valores burgueses, postura que fez questão de manter até o final da vida. E a única faixa que tem a letra estampada na contracapa desse álbum é “Rockxixe”, onde Raul diz ser um “anjo do Inferno que chegou pra lhe buscar”. Por aí, já dá pra ver como ele não era nada cristão. Isso sem falar em faixas polêmicas como a satânica “Rock do Diabo”, a autoexplicativa “Eu Sou Egoísta”, a machista “Rock das Aranha”, a possível pedófila “Baby” e “À Beira do Pantanal”, que fala sobre a confissão de um assassinato. Está claro: Raul não era santo. Mas é exatamente por isso que tanta gente se identifica com ele. “Não tenho dúvida nenhuma disso. Ele mesmo dizia que era o somatório de tudo que ele viveu e sofreu. E se nota isso no trabalho dele”, diz Sylvio.
A vida inteira de Raul foi marcada por posicionamentos e hábitos excessivos: “O álcool foi o grande vilão que prejudicou não só a questão pessoal, mas também profissional. Os menos informados chamam ele de maconheiro, mas ele nunca gostou tanto de maconha. A única droga que ele usou de fato foi a cocaína e ele dizia que a relação dele com a coca era profissional. O lance dele era álcool, cocaína e cigarro. Ah, e éter! Ele dizia que éter era coisa de criança, não era droga”, conta Sylvio, que chegou a acompanhar Raul em sessões dos Alcóolicos Anônimos e clínicas de reabilitação. Além de alcóolatra, tabagista e cocainômano, Raul era muito revoltado e não perdia a chance de criticar todas as instituições sociais possíveis com um sarcasmo irônico implacável. Criticou o Catolicismo – “Só Pra Variar”, o Protestantismo – “Pastor João e a Igreja Invisível”, a Ciência – “Todo Mundo Explica”, a Família – “Sapato 36”, o Governo – “Abre-te Sésamo”, o Casamento – “A Maçã”, a Classe Artística – “Eu também vou reclamar”.
Apesar de ter gravado a música “Movido a álcool”, o que realmente movia a arte de Raul era a raiva, fruto de uma reflexão crítica constante sobre o mundo, e o medo – possivelmente ligado à paranoia característica da cocaína, mas também motivado pelas violências que sofreu. Em 1974, Raul e Paulo Coelho foram presos e “convidados” a saírem do Brasil pela ditadura e em 1982 ele foi preso no meio de um show e espancado na delegacia por acharem que ele não era o Raul Seixas de verdade, e sim um impostor. “Ele nunca ficou tranquilo e a falta de tranquilidade era um combustível pra compor”, lembra Sylvio Passos. De fato, o medo acabou sendo um tema bem recorrente em sua obra (explicitado em músicas como “Para Noia”, “Medo da Chuva”, “Conserve Seu Medo” e “Para Noia II”).
A virtude de sua música – ao mesmo tempo comercial e subversiva – é fundamental para que sua legião de fãs cresça e perdure até hoje. Mas se Raul não fosse um artista tão autêntico e não escancarasse também as suas imperfeições, dificilmente o maluco beleza seria tão amado pelo povo quanto é atualmente. As fraquezas do personagem lendário são fundamentais para que o público possa sentir na carne uma identificação plena com ele. Rick Ferreira, guitarrista que participou de todos os discos do Raul a partir do Gita (1974) e excursionou com ele no início e no fim da carreira, conta que os problemas de saúde do cantor interferiam principalmente “no relacionamento com as gravadoras e nas apresentações ao vivo”. Basta ver esses dois vídeos, um de 1973 e outro de 1982, para ver como Raul teve sua capacidade de performance em cima do palco bastante comprometida pelas doenças que adquiriu pelos excessos.
Para Rick Ferreira, Raul Seixas se tornou uma lenda tão grande simplesmente porque ele “foi e ainda é o maior artistas de todos tempos”: “Raul sempre foi uma pessoa a frente do nosso tempo. Sem exageros, eu comparo a importância e a obra do Raul à obra dos Beatles”, diz o guitarrista. Mesmo que a comparação seja arriscada, é verdade que pouquíssimos artistas conseguem atingir um grau de unanimidade tão grande quanto os Beatles e Raul. “Todas as tribos se identificam com o Raul – o pessoal do reggae, do punk, do metal, do pagode, do sertanejo. Todo mundo absorveu o Raul. Mas cada um traduz ele de acordo com sua própria realidade, o metaleiro ouve o Raul curtindo ‘o Diabo é o pai do Rock’ e a mãe do metaleiro ouve ‘Trem das 7′ e tá tudo bem. Isso realmente é um fenômeno”, avalia Sylvio Passos.
E que fenômeno. Zé Ramalho dedicou um disco inteiro para fazer versões de Raul. No CD e DVD chamado O Baú do Raul: uma homenagem a Raul Seixas (2004) tocam músicos tão diversos quanto Caetano Veloso, DJ Malboro, Toni Garrido, Zélia Duncan e Gabriel, o Pensador. Chitãozinho & Xororó já gravaram mais de uma música dele. O último disco de Zezé Di Camargo & Luciano também é uma homenagem ao cantor baiano e se chama Teorias de Raul (2014). Até o Bruce Springsteen tocou uma música do Raul no último Rock in Rio sediado no Brasil.
Com tudo isso, engana-se quem pensa que Raul Seixas morreu 25 anos atrás. Como os grandes heróis mitológicos, o maluco beleza – que também era a luz das estrelas, mosca na sopa, cachorro-urubu, astrólogo, carpinteiro do universo, carimbador maluco, moleque maravilhoso, cowboy fora da lei e acima de tudo metamorfose ambulante – é eterno.
Fonte: Bau dos Raul'S com noize.com.br
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